Origens Indígenas Redescobertas: Pesquisa sobre a Vila de Guaibura, em Guarapari
A Vila de Guaibura, que fica no bairro Enseada Azul, em Guarapari, é a terra do povo indígena Borum M’nhang Uipe. Essa é a conclusão da pesquisa feita por Potira de Almeida, moradora da comunidade e integrante da Organização Não Governamental (ONG) Gaya Religare, que luta contra a instalação do condomínio de luxo Manami no Morro de Guaibura.
Potira realizou a pesquisa durante o ano de 2023, a partir de relatos orais dos mais velhos da comunidade, além de buscas em uma ferramenta online e outras referências bibliográficas. Em janeiro, ela enviou o documento com o histórico da vila, como uma carta de autodeclaração à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). O processo está em tramitação, e uma equipe da Funai deverá ser enviada ao local em breve.
Ela também entregou uma cópia do estudo para o governador Renato Casagrande (PSB), no último dia 15 de fevereiro, durante um encontro com estudantes aprovados no Sisu 2024 – Potira passou no curso de História da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
“Tudo começa nas rodas de contação de história de tia Idália e no colo de vó Davina. Esse contato direto com a ancestralidade sempre despertou em mim curiosidade, principalmente em saber o que há por baixo da água que brota da terra. As histórias foram passadas oralmente de geração em geração, até os dias atuais, mas decidi botar no papel e mostrar para o mundo que estamos aqui, interagindo e habitando há 100 anos”, relata Potira.
De acordo com a pesquisa, em meados do século XVI, a região onde hoje fica a Vila de Guaibura era um local de passagem para grupos da etnia Borum. Esses grupos – também chamados de “Aymorés” e, posteriormente, “Botocudos” – eram conhecidos pela alcunha “Goyamura”, que significa “os inimigos que vagueiam” na língua tupi.
A habitação fixa da Vila de Guaibura tem seus registros iniciais em um recenseamento de 1920. Um dos primeiros habitantes foi Agnelo Almeida, que até então tinha uma vida nômade. Agnelo é neto de Joaquina Maria da Conceição, indígena (provavelmente da etnia Borum) de pele retinta, que foi raptada ainda jovem, no norte do Estado.
Segundo Potira, Agnelo, de quem é descendente direta, sempre reivindicou sua indigeneidade e passou à frente as histórias contadas por sua avó e sua mãe, Alexandrina Maria da Conceição. A própria Vila de Guaibura era chamada de Aldeia Guaibura, segundo os relatos de moradores acima dos cinquenta anos, até a década de 1970, quando a ditadura militar intensificou o processo de apagamento das origens ancestrais do povoado.
“Minha avó sempre afirmou que somos indígenas, e contava as histórias de seu pai, avó e bisavó. Contava que o biso (Agnelo) não tinha moradia fixa, que era obrigado a se mudar diversas vezes, resultando num intenso fluxo pelo Espírito Santo. Ela também deu algumas pistas sobre a exatidão de nossas raízes. Quando eu falei fora de casa que era indígena, ainda criança, ela disse: ‘fia, cuidado, senão podem te pegar’. Desde aquele dia, comecei a pesquisar mais sobre alguns porquês que cercavam a família”, conta Potira.
Disputa pelo Morro de Guaibura
De acordo com a pesquisa, os mais velhos da comunidade relatam que, após a Segunda Guerra Mundial, na década de 1950, um grupo de pessoas de Minas Gerais, liderados por José Cunha Lima, chegou até a vila afirmando ser dono do Morro de Guaibura, costão rochoso de uso comum da comunidade, que faz uso dos mariscos, plantas, conchas e da água de um poço. Os moradores enfrentaram e impediram a ocupação do morro.
Em 1964, foi aprovado o loteamento de Enseada Azul, ignorando as comunidades de pescadores e nativos da região e dando isso a um processo de especulação imobiliária. O próprio José da Cunha Lima vendeu sua escritura do morro de Guaibura, que, por sua vez, foi revendida diversas vezes.
Entre os 1980 e 1990, há uma nova investida. Jan Siepierski Filho, Jan Siepierski Netto e Eduardo Luiz Siepierski afirmaram que eram donos da área, em conjunto com a empresa Carlos Guilherme Lima Construtora. Essa propriedade foi apresentada como um espólio de Hanna Hadad, pai de Michel Yazeji Hadad, ex-vereador e ex-prefeito de Guarapari – que, nos anos 1990, ordenou a demolição de uma igreja que havia sido construída pela comunidade no morro.
Novas tentativas de exploração imobiliária da área foram feitas ao longo dos anos 1990 e início dos 2000, mas barradas pelo Conselho Estadual de Cultura (CEC) e pelo Instituto Estadual de Meio Ambiente (Iema), que atestaram a importância ambiental e cultural do Morro de Guaibura.
O atual processo de implantação do condomínio de luxo Manami pela empresa Design 16 teve início em 2019, mas a comunidade só tomou conhecimento em 2022. “O Manami não fez nenhum estudo antropológico na região, nem cultural sobre o território. A área onde está sendo suprimida vegetação pelo empreendimento é parte do nosso território atual e ancestral, e eles ignoraram nossa presença e nossa cultura”, argumenta Potira.
Borum M’nhang Uipe
O termo Borum M’nhang Uipe significa “gente da água que brota”. Ele se baseia no fato de que as regiões de Meaípe, Mucunã e Guaibura eram conhecidos pelos mais velhos como uma terra só, Meaípe – que, segundo se difunde, significaria “bolinho de mandioca” em tupi. Mas, segundo Potira, a origem mais provável de Meaípe é da palavra “M’nhang Uipe” no Borum. Ou seja, vivem em Guaibura os remanescentes da etnia Borum da região.
Segundo Potira, as pessoas mais velhas da comunidade assinaram também a carta de autodeclaração indígena. Elas tiveram acesso ao estudo por meio de uma versão ilustrada e resumida.
“Elas gostaram bastante, é a primeira vez que a gente consegue contar nossa história da forma correta, vindo diretamente de nós. Contar sobre quem somos e sobre nossas raízes foi algo do qual nos privaram por muito tempo, assim como vários outros povos originários. Hoje, poder contar nossa história é um marco”, completa.
Especialista em moderação e revisão de conteúdo para jornais do consórcio de notícias, garante a qualidade editorial e a precisão das publicações, mantendo padrões rigorosos de precisão e excelência informativa.